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domingo, 27 de abril de 2025

A Determinação da Identidade Judaica pela Linha Materna: Fontes na Torá Escrita, Torá Oral e Implicações Contemporâneas:

Ilustração de uma mãe judia e seu filho judeu

A determinação da identidade judaica exclusivamente pela linhagem materna é uma norma bem estabelecida no judaísmo tradicional, embora não esteja explicitamente formulada na Torá Escrita (Pentateuco). Essa norma é fundamentada em interpretações rabínicas que integram a Torá Escrita e a Torá Oral, e encontra expressão mais desenvolvida no Talmude. A seguir, serão apresentados os fundamentos textuais, a evolução desta norma e sua aplicação nas diferentes correntes do judaísmo contemporâneo.

1. Base na Torá Escrita:

Embora a Torá (os cinco livros de Moisés) não declare explicitamente que a identidade judaica é determinada pela mãe, certas passagens são interpretadas como apontando nesta direção. Um dos principais textos é encontrado em Deuteronômio 7:3-4, onde se lê:

“E não te aparentarás com elas [as nações cananeias]: não darás tua filha a seu filho, nem tomarás sua filha para teu filho. Pois ele afastará teu filho de seguir a Mim, e eles servirão outros deuses…” (Deuteronômio 7:3-4)

A leitura rabínica observa que o versículo trata de casamentos mistos e suas consequências religiosas. A expressão “afastará teu filho” é interpretada como se referindo à criança nascida de uma união entre um israelita e uma mulher estrangeira. O fato de o texto referir-se ao filho do casal como “teu filho” (no caso de a mãe ser estrangeira) sugere, segundo a tradição rabínica, que essa criança não será reconhecida como plenamente israelita, pois será desviada para práticas idólatras. Assim, o vínculo do filho com a identidade de Israel depende fundamentalmente da condição da mãe (Rashi, ad loc.; Sifrei Devarim 43).

2. Formulação na Torá Oral e no Talmude:

A concepção de que a identidade judaica é transmitida pela mãe é explicitada na Torá Oral, que foi posteriormente codificada no Talmude. No tratado Kidushin 68b, os sábios discutem as implicações dos casamentos mistos e afirmam:

“O filho de tua filha é chamado 'teu filho', mas o filho de teu filho (com uma mulher não judia) não é chamado 'teu filho'.” (Kidushin 68b)

A partir desta formulação, conclui-se que a descendência judaica segue a linha materna: um filho de mãe judia é judeu, independentemente da origem do pai; entretanto, o filho de um pai judeu com uma mãe não judia não é considerado judeu de nascimento.

Essa regra foi mais tarde formalizada nas obras haláchicas, como no Shulchan Aruch (Yoreh De'ah 268:6), reafirmando que a conversão é necessária para filhos de mães não judias, ainda que o pai seja judeu (Carvalho, 2017).

3. Aplicação nas Correntes Judaicas Contemporâneas:

Judaísmo Ortodoxo:
O judaísmo ortodoxo mantém firmemente a tradição talmúdica. Para um indivíduo ser considerado judeu, sua mãe deve ser judia por nascimento ou ter passado por uma conversão formal válida, conforme a Halachá (Bleich, 1991). A descendência paterna não é suficiente.

Judaísmo Conservador:
O movimento conservador também reconhece a linhagem materna como a via principal para a transmissão da identidade judaica. Entretanto, em resposta a realidades sociológicas contemporâneas, algumas comunidades conservadoras aceitam filhos de pai judeu e mãe não judia como judeus, se forem educados no judaísmo e se comprometerem formalmente com a tradição judaica (Golinkin, 2001).

Judaísmo Reformista:
Desde 1983, o movimento reformista nos Estados Unidos (Union for Reform Judaism) passou a aceitar a linhagem paterna como igualmente válida, desde que a criança receba uma educação judaica e manifeste identificação com o povo judeu (Winer, 1983). Isso representou uma mudança significativa em relação à tradição rabínica clássica.

Judaísmo Reconstrucionista:
Este movimento segue uma abordagem similar à reformista, aceitando tanto a linhagem materna quanto paterna sob as mesmas condições de educação e compromisso (Eisenstein, 1986).

4. Considerações Finais:

A determinação da identidade judaica pela mãe é, portanto, uma construção baseada na leitura interpretativa da Torá Escrita e formalizada na tradição oral rabínica. Embora esta norma continue sendo normativa no judaísmo ortodoxo e em setores do judaísmo conservador, há movimentos contemporâneos que vêm reexaminando esta questão em função das mudanças sociais e demográficas.

Essas diferenças, por sua vez, criam implicações práticas importantes no reconhecimento da identidade judaica entre as diversas comunidades e, especialmente, em temas como direito de imigração a Israel (Lei do Retorno) e aceitação em comunidades tradicionais (Bleich, 1991; Schiffman, 1991).


Referências Bibliográficas

  • Bleich, J. David. Contemporary Halakhic Problems. Vol. 3. New York: KTAV Publishing House, 1991.

  • Carvalho, Aharon S. Elementos de Halachá Contemporânea. São Paulo: Editora Sefer, 2017.

  • Eisenstein, Ira. Judaism Under Freedom: Essays in Jewish Philosophy. Reconstructionist Press, 1986.

  • Golinkin, David. Halakhic Responses to Contemporary Issues. Schechter Institute of Jewish Studies, 2001.

  • Schiffman, Lawrence H. From Text to Tradition: A History of Second Temple and Rabbinic Judaism. New York: Ktav, 1991.

  • Winer, Alexander M. The Status of Children of Mixed Marriages: A Reform Perspective. Central Conference of American Rabbis, 1983.

  • Rashi (Rabbi Shlomo Yitzhaki). Comentário sobre a Torá, Deuteronômio 7:4.

  • Sifrei Devarim, edição clássica da Torá Oral.

  • Talmud Bavli, Trato Kidushin 68b.

  • Shulchan Aruch, Yoreh De'ah 268:6.

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