Tradutor

quinta-feira, 1 de maio de 2025


Sola Scriptura e Sola Scientia: Autoridade da Revelação e Autoridade da Razão:

Introdução:

O princípio da Sola Scriptura foi um dos pilares da Reforma Protestante do século XVI, defendendo a Escritura como a única autoridade infalível em matéria de fé e prática cristã. Em contraste, a modernidade, especialmente a partir do Iluminismo, trouxe uma elevação da razão e da ciência como únicas autoridades confiáveis para o conhecimento humano — uma posição que, para alguns, poderia ser descrita como Sola Scientia. Este artigo analisa histórica e filosoficamente ambos os conceitos, examinando seus fundamentos, tensões e implicações culturais e teológicas.

1. Sola Scriptura: Origem e Desenvolvimento

O termo Sola Scriptura (latim para “somente a Escritura”) surgiu em resposta à autoridade da tradição eclesiástica e do magistério papal no final da Idade Média. Para reformadores como Martinho Lutero (1483–1546), a Escritura era autossuficiente, clara e necessária para a salvação, tornando qualquer outra fonte de autoridade secundária e falível.

Segundo David Steinmetz (1991), “a intenção de Lutero não era rejeitar totalmente a tradição, mas submetê-la ao teste das Escrituras” (STEINMETZ, The Bible in the Sixteenth Century). Lutero escreveu:

“Uma simples leiga armada com as Escrituras é mais poderosa do que o mais poderoso papa sem elas.” (LUTERO, Carta ao Cardeal Cajetano, 1518)

Outros reformadores, como João Calvino (1509–1564), reforçaram essa perspectiva. Em seu Institutas da Religião Cristã, Calvino argumenta que “a certeza que temos da Escritura é mais alta do que qualquer prova humana, pois ela é selada pelo testemunho do Espírito Santo”.

Contudo, desde o início, os reformadores debateram os limites da Sola Scriptura: haveria espaço para interpretações dogmáticas? Como lidar com as tradições apostólicas?

2. Sola Scientia: A Ciência como Nova Autoridade

O surgimento da ciência moderna nos séculos XVII e XVIII, associado a nomes como Galileu GalileiIsaac Newton e posteriormente Charles Darwin, reformulou as categorias de conhecimento e autoridade. A Revolução Científica e o Iluminismo propuseram que a razão humana e a observação empírica poderiam, por si mesmas, explicar o mundo — sem a necessidade da revelação divina.

Filósofos iluministas como Immanuel Kant proclamaram o “Sapere Aude” — “ouse saber” — defendendo que o uso autônomo da razão era o caminho para a libertação humana (KANT, Resposta à Pergunta: O que é o Iluminismo?, 1784).

Nesse contexto, emerge implicitamente a ideia de uma Sola Scientia, ou seja, uma confiança exclusiva na ciência como fonte e definitiva de verdade. O positivismo de Auguste Comte e o cientificismo do século XIX cristalizaram essa tendência.

Richard Dawkins, em obras contemporâneas como The God Delusion (2006), ecoa esse espírito ao afirmar que “a ciência não somente pode explicar o que antes era considerado domínio exclusivo da religião; ela faz isso de maneira muito melhor”.

Entretanto, filósofos como Michael Polanyi e Thomas Kuhn mostraram, no século XX, que mesmo a ciência é construída sobre paradigmas e pressupostos pré-racionais (POLANYI, Personal Knowledge, 1958; KUHN, The Structure of Scientific Revolutions, 1962).

3. Comparação Filosófica: Revelação versus Razão.

AspectoSola ScripturaSola Scientia
Fonte de AutoridadeRevelação divina nas EscriturasObservação empírica e método científico
CertezaTestemunho do Espírito SantoVerificação experimental e consenso
Natureza do ConhecimentoEspiritual, moral e eternaEmpírica, material e contingente
Limitações ReconhecidasNecessidade de iluminação espiritualParadigmas científicos são mutáveis

A comparação evidencia que tanto a Sola Scriptura quanto a Sola Scientia reconhecem uma “instância normativa suprema”, mas diferem radicalmente em sua natureza: a primeira é pessoal e transcendente; a segunda, impessoal e imanente.

4. Tensões e Diálogos Contemporâneos:

Hoje, em ambientes seculares e pós-cristãos, a Sola Scientia se torna, para muitos, a “fé não admitida” da modernidade. Como argumenta Charles Taylor em A Secular Age (2007), a ciência não apenas compete, mas frequentemente substitui o sentido religioso.

No entanto, teólogos e filósofos como Alvin Plantinga (Where the Conflict Really Lies, 2011) defendem que ciência e fé não são intrinsecamente antagônicas, mas operam em esferas complementares.

Plantinga escreve:

“A alegada guerra entre ciência e religião é, em grande medida, um mito popular… não há conflito real entre a fé cristã e a ciência propriamente dita.”

John Polkinghorne, físico e teólogo, também propõe uma “dupla verdade”, onde a fé fornece a moldura interpretativa última para os dados empíricos (POLKINGHORNE, Science and Theology, 1998).

Conclusão:

O princípio da Sola Scriptura representou uma revolução teológica que reposicionou a autoridade espiritual exclusivamente na Palavra de Deus, em contraposição a instituições humanas. A ascensão moderna da ciência gerou uma “fé” na Sola Scientia, onde a razão empírica se torna a medida de toda a verdade.

Entretanto, tanto a teologia quanto a filosofia contemporânea apontam para os limites dessa absolutização. A busca pelo conhecimento pleno exige reconhecer tanto a revelação quanto a razão, tanto a ciência quanto a fé.

Uma compreensão madura das relações entre Escritura e ciência não repousa na exclusão de uma em favor da outra, mas em sua integração harmoniosa, respeitando as distinções próprias de cada domínio.

__________________________________________________________________________________

Referências Bibliográficas

  • CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. Trad. Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.

  • DAWKINS, Richard. The God Delusion. London: Bantam Press, 2006.

  • KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: O que é o Iluminismo?, 1784.

  • KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: University of Chicago Press, 1962.

  • LUTHER, Martin. Carta ao Cardeal Cajetano, 1518.

  • PLANTINGA, Alvin. Where the Conflict Really Lies: Science, Religion, and Naturalism. Oxford: Oxford University Press, 2011.

  • POLANYI, Michael. Personal Knowledge: Towards a Post-Critical Philosophy. Chicago: University of Chicago Press, 1958.

  • POLKINGHORNE, John. Science and Theology: An Introduction. Minneapolis: Fortress Press, 1998.

  • STEINMETZ, David C. The Bible in the Sixteenth Century. Durham: Duke University Press, 1991.

  • TAYLOR, Charles. A Secular Age. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 2007.


Nenhum comentário:

Postar um comentário