Tradutor

terça-feira, 3 de junho de 2014

ΑΩ - O Antigo e Novo Testamentos:

    As expressões cristãs "Antigo Testamento" e "Novo Testamento" são de natureza intensamente teológica. Essas expressões baseiam-se na crença de que os livros do Antigo Testamento pertencem a um período do relacionamento entre Deus e o mundo que foi, de certa forma, superado ou relativizado com a vinda de Cristo, no Novo Testamento. Grosso modo, a mesma coletânea de textos é designada por escritores judeus como: Torah (Instrução), Nevi'im (Profetas) e Ketuvim (Escritos), e pelos escritores cristãos como: Antigo Testamento. Portanto, não há qualquer motivo particular pelo qual alguém, que não seja cristão, deva se sentir compelido a chamar essa coleção de livros como Antigo Testamento, a não ser por uma questão de costume.
    A estrutura da teologia cristã que conduz a essa diferenciação entre os Antigo e Novo Testamentos é a das "alianças" ou "dispensações". A crença cristã básica de que a vinda de Cristo dá início a algo novo se exprime em uma atitude característica em relação ao Antigo Testamento, que poderia ser basicamente sintetizada dessa forma: os princípios e as ideias religiosas presentes no Antigo Testamento (como, por exemplo, a noção da soberania de um Deus que age na história humana) são aceitos como algo apropriado; às práticas religiosas (como as leis alimentares e as práticas de sacrifícios) não são admitidas.

    Portanto, como os Antigo e Novo Testamentos estão relacionados entre si, segundo a ótica da teologia cristã?? Uma das alternativas foi tratar o Antigo Testamento como os documentos de uma religião que tinha qualquer ligação com o cristianismo. Essa abordagem é particularmente associada a Marcião, em escritor do século II que foi excomungado no ano 144. De acordo com ele, o cristianismo era uma religião de amor, na qual não havia qualquer espaço para a Lei. O Antigo Testamento está ligado a um Deus diferente do Deus do Novo Testamento; o Deus do Antigo Testamento, que havia criado apenas o Mundo, era obcecado pela ideia da Lei. O Deus do Novo Testamento, porém, havia salvo o Mundo e preocupava-se com o amor. De acordo com Marcião, o propósito de Cristo tinha sido a destituição do Deus do Antigo Testamento (que guardava uma incrível semelhança com o "demiurgo" dos gnósticos, uma figura semidivina vista como princípio organizador do universo), introduzindo-nos na adoração do verdadeiro Deus da graça.

    A posição da maioria dentro da teologia cristã enfatizou, de um lado, a continuidade entre os dois testamentos, destacando, de outro lado, que existe entre ambos. Calvino proporciona-nos uma discussão característica e lúcida sobre esse relacionamento, da qual passaremos a tratar.
    Calvino defende a existência de uma fundamental semelhança e continuidade entre os Antigo e Novo Testamentos, com base em três aspectos. Primeiro, ele enfatiza a imutabilidade da vontade divina. Não é plausível que Deus aja de uma determinada forma no Antigo Testamento e, logo a seguir, aja de maneira totalmente distinta no Novo Testamento. Deve existir uma continuidade fundamental de ação e intenção entre os dois testamentos. Segundo, ambos celebram e proclamam a graça de Deus manifestada em Jesus Cristo. Pode ser que o Antigo Testamento seja capaz de oferecer um testemunho de Jesus apenas "à distância e de forma obscura"; no entanto, seu testemunho da vinda de Cristo é real. Em terceiro lugar, ambos os testamentos possuem "os mesmos sinais e sacramentos", dando testemunho da mesma graça por parte de Deus.
    Assim, Calvino defende que os dois testamentos são basicamente idênticos. Eles se diferenciam em administratio, mas não em substantia. Em relação à substância e conteúdo, não há ruptura radical entre ambos. O Antigo Testamento acaba ocupando uma posição cronológica diferente do Novo Testamento no plano da salvação; entretanto, seu conteúdo (adequadamente entendido) é exatamente o mesmo.

Conclusão:

    Calvino sintetiza esse princípio geral com a afirmação de que "naquilo que se refere à lei em geral, a única diferença, em relação ao evangelho, está na clareza de apresentação". Cristo é anunciado e a graça do Espírito Santo é ofertada em ambos os testamentos - embora de uma forma mais clara e mais completa no Novo Testamento.


Fonte: "Teologia - Sistemática, Histórica e Filosófica" - Alister E. McGrath - Páginas: 202, 203, 204 e 205.

2 comentários:

  1. Certa vez um professor de Filosofia nos falou que o correto seria que chamassem Primeiro e Segundo Testamentos para os testamentos bíblicos porque, segundo ele, quando se diz Antigo e Novo pressupõe-se que algo esteja ultrapassado.

    O texto que você escreveu, Marcelo, torna incontestável a ideia de que os dois Testamentos se completam, complementam-se e que há harmonia entre ambos. O interessante é que você abordou o assunto de forma imparcial e honesta, sem ser tendencioso, visto que cada teólogo procura enfatizar o seu discurso com base em seu próprio credo religioso, porque a Teologia é individual, você sabe, e o cardápio teológico possui uma imensa variedade.

    ResponderExcluir
  2. Obrigado!! Sim, teu professor de Filosofia está correto, a forma certa para se referir aos Testamentos é: Primeiro Testamento e Segundo Testamento. É desta forma que os "judeus"- messiânicos tratam os livros da Bíblia Sagrada, chamando assim, o Primeiro Testamento (que os cristão chamam de Antigo Testamento), de Tanack, e o Segundo Testamento (que os cristãos chamam de Novo Testamento), de B'rit Chadashá.

    ResponderExcluir