Muitas pessoas afirmam que Moisés desceu do monte, apenas com as duas tábuas dos Dez Mandamentos. Porém, lendo-se atentamente onde essa passagem está escrita, veremos que foi muito mais que isso:
Veja: "Então, disse o SENHOR a Moisés: Sobe a mim, ao monte, e fica lá; dar-te-ei tábuas de pedra, e a lei, e os mandamentos que escrevi, para os ensinares" (Êxodo 24:12).
Para entender melhor o verso acima, é preciso partir do princípio de que, a tradução do texto não é precisa na versão adotada (ou nas versões adotadas) pela maioria das Bíblias existentes no Brasil. Seria mais fidedigno traduzi-lo assim: "[...] dar-te-ei as tábuas de pedra {os Dez Mandamentos}, a Lei e o ESTATUTO".
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No primeiro caso, ao invés de "mandamentos", o tradutor deveria ter usado a expressão "ESTATUTO", pois os mandamentos já estão inseridos nas duas tábuas. Deus não lhe teria entregue as pedras em branco, mas com os Dez Mandamentos ali inscritos. Por isso, usar "mandamentos" é uma redundância, vez que, pelo texto sagrado, pode-se aferir que Deus entregou-lhe as tábuas e os estatutos. Justamente nessa sequência: o primeiro em Êxodo 20 e o segundo em Êxodo 21.
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O termo "estatuto" na Bíblia geralmente, vêm flexionado no plural, o que não seria correto. "Estatutos"são dois ou mais. E quando refere-se àquele estatuto - ou a um só estatuto -, deverá vir sempre no SINGULAR: "o estatuto".
É certo que a conversa entre Deus e Moisés foi mais longa e proveitosa do que se imagina. Afinal, quarenta dias de ensinamentos não poderiam ser resumidos em dez palavras. Parece-nos bastante claro que, naqueles quarenta dias estavam sendo criados os fundamentos do Estado de Israel, um país tipicamente teocrático.
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O Decálogo é o conjunto básico de leis que caracteriza a constituição desse Estado. No estado de direito, com o passar dos tempos, é comum instituir-se leis ordinárias que se assemelham ao tal estatuto que a Bíblia cita. Um exemplo bastante próximo está no Código Civil Brasileiro. Quem o ler atentamente, verá que muita coisa se parece com as leis que estão dispersas nos livros do Pentateuco (Torah).
O leitor da Bíblia menos atento imaginará sempre que, no monte, Moisés recebeu apenas as tábuas da Lei, mas não é exatamente isso que lemos nos texto bíblico. Observe que, em Êxodo 24:12, Deus deu a Moisés três coisas: tábuas de pedra, Lei e os mandamentos:
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Primeiro - as tábuas de pedra (Dez Mandamentos);
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Segundo - as Leis - Torah (sociais, de propriedade etc);
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Terceiro - os mandamentos (estatutos).
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Deus sabia (e sabe) fazer a diferença entre esses expedientes ordinários, talvez nossos tradutores, pela exiguidade das palavras, é que misturaram a hierarquia das leis.
Deus sabia (e sabe) fazer a diferença e entre "estatutos" e "juízos". Confira isso, lendo Deuteronômio 4:13-14 :
"Então, vos anunciou Ele a sua aliança, que vos prescreveu, os Dez Mandamentos, e os escreveu em duas tábuas de pedra. Também o SENHOR me ordenou, ao mesmo tempo, que vos ensinasse estatutos e juízos, para que os cumprísseis na terra a qual passais a possuir."
Geralmente eles vêm na ordem: aliança e mandamento; estatuto e juízo.
Desde os tempos de Abraão, algumas dessas leis já existiam:
A Lei existia antes mesmo do Decálogo. Confira o que Moisés disse a Jetro, seu sogro, muito antes da promulgação do Decálogo:
"Quando tem alguma questão, vem a mim, para que eu julgue entre um e outro e lhes declare os estatutos de Deus e as suas leis" (Êxodo 18:16).
Não nos esqueçamos de que esses livros só foram entregues no versículo doze de Êxodo 24. Porém, lá no versículo sete, o autor já fala no Livro da Aliança (a que Deus fizera com Abraão). Isso nos dá a entender que o Livro da Aliança fora editado antes.
Ora, Deus dera o Decálogo, a espinha dorsal legislatória, mas não entregou-lhes as leis complementares, que, conforme o próprio termo sugere, "complementariam" a lei maior. Vide um modesto exemplo: "Não matarás". Fundamentalmente, isso não é auto-aplicável, pois, pelo menos na atual legislação, matar é até permitido, desde que seja em legítima defesa. Por isso, precisamos de uma complementação que explicite e abone esse procedimento. Se alguém matar apenas na intenção de defender a si, aos seus ou ao patrimônio, deverá ser absolvido.
Mas a princípio não se pode matar. Talvez, seja também o caso de roubar. Mas, se esse roubo for de comida para matar a fome e entrar numa plantação de frutas e apanhar algumas para comer e matar sua fome, isso não é crime; ou pelo menos, esse crime será melhor adjetivado e considerado apenas um "crime famélico". Portanto, o ladrão poderá ser absolvido desse crime. São detalhes que, pelo caráter enxuto de uma Constituição, não podem ser ali contemplados. Por isso, é preciso explicitá-los em leis específicas. Contudo, isso não altera o princípio fundamental que não permite roubar. Mas como toda boa Constituição deve ser resumida, abordando apenas as situações cruciais, não poderia abordar - nem excessivamente dilatar - questões normativas. Para tanto, a moderna democracia criou o Poder Legislativo. Qualquer lei, quando criada, chama-se "ordinária" (exemplo: não é permitida a venda de álcool aos domingos). Já a lei que, posteriormente, tornará aplicável, o princípio legal é uma lei "regulamentar" (exemplo: a venda do álcool não será proibida quando feita em locais fechados e frequentados por maiores). A esse conjunto de leis, podemos chamá-lo de código. E foi mais ou menos isso o que Deus exigiu que Moisés fizesse.
Quando lemos na Bíblia, em Êxodo 24:12, que Deus entregou três coisas a Moisés, nossa mente tende a não aceitar essa informação, pois, pelo contexto, entendemos que Moisés desceu do monte trazendo apenas as duas tábuas consigo. Aos escritores é sabido que a inspiração para um livro chega-lhe por intermédio, muitas vezes de uma só vez. No entanto, a sua consecução e o correto ordenamento dessas ideias pode levar décadas para ser concluído.
E o mesmo poderia ter ocorrido com Moisés. Deus deu-lhe as três coisas, mas pode ter-lhe entregue "em mãos", apenas uma, o que seria perfeitamente aceitável. Deus pode ter entregue a Moisés um enunciado com Suas leis, mas a decodificação desses princípios e sua aplicação terrena, seria uma das missões a ele confiadas.